segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Biblioteca comunitária Caranguejo Tabaiares: mudando pré-conceitos, formando conceitos



    Lugares marcados pela ausência de políticas públicas na área cultural transformam-se aos poucos em bairros de ações significativas nessa área de educação. É o caso da comunidade Caranguejo Tabaiares, que fica no Bairro da Ilha do Retiro, no Recife. Um lugar de ruas estreitas, sem asfalto, sem praças. Por entre becos e casas coladinhas uma a outra, está erguida de forma concreta a esperança de pessoas que acreditam na transformação. Trata-se da Biblioteca Caranguejo Tabaiares.

    Até 2008 não existia no local espaços de lazer e cultura. As crianças e os jovens vivenciavam dificuldades até para realizar seus trabalhos escolares. Mas o caso não se restringe apenas ao bairro. De acordo com os dados do MEC, 420 municípios brasileiros não possuem o equipamento, sendo 161 deles no Nordeste. A região tem uma média de 2,23 bibliotecas por 100 mil habitantes. Em Pernambuco este índice é de 1,85. O município com maior número é Igarassu (0,99), o pior é Recife (0,12). Entre Jaboatão dos Guararapes, Recife e Olinda existem apenas cinco, isso para mais de dois milhões de pessoas.

    Com o surgimento da biblioteca comunitária Caranguejo Tabaiares o acesso aos livros democratizou a leitura. É só procurar o livro desejado e fazer o empréstimo. A história começou a partir do convite de uma instituição de ensino do Recife a Reginaldo Pereira e Cleonice da Silva, moradores do local. Eles abraçaram a causa e passaram a dedicar tempo, forças e esperanças no projeto.

    Dentre os objetivos iniciais estava o de melhorar o desempenho das crianças nas atividades escolares, incentivando-as a estudar. No entanto, por trás da ação, está uma luta contra a violência urbana, a pobreza e o comodismo. As mudanças são perceptíveis. Cinco mil pessoas da comunidade passaram a buscar lazer na biblioteca. Em 2009, 80% fizeram empréstimos de livros, 500 crianças participaram da V Semana do Conto de História, durante o mês de janeiro, e 50% dos alunos da rede oficial de ensino fizeram atividades de leitura.

    A sede é mantida com algumas doações vindas de institutos, prefeitura e pessoas físicas. Os funcionários recebem uma bolsa, em dinheiro, paga pela prefeitura do Recife. Mas, mesmo com alguns patrocinadores, o espaço ainda é alugado e não há mais onde se colocar os livros. Os fundadores vivem os dilemas de não possuir verbas suficientes instalar uma sede própria. Eles já possuem o terreno, mas falta material para construção e mão-de-obra. Para Cleonice essa é uma das maiores dificuldades que os organizadores enfrentam. “Realmente o que nos falta é nosso cantinho. Se um dia o dono pedir essa casa, eu não sei como vai ser. Onde vamos colocar os quase dez mil livros que temos?”, lamenta.

Recomeços, transformações, lições de vida
 
Cleonilha e Reginaldo
    A biblioteca interferiu diretamente na história de muitas pessoas envolvidas no processo. É o caso de um de seus fundadores, Reginaldo Pereira. Em outros tempos ele não poderia imaginar que, aos 27 anos, sua vida estaria radicalmente transformada. Morador da comunidade Caranguejo Tabaiares, filho de comerciante, e acompanhava o pai durantes as vendas no centro do Recife, nos estádios e nos shows. Ao surgir o projeto de uma biblioteca comunitária, Reginaldo sentiu que deveria envolver-se. Como participava de grupos da igreja católica, ele já sentia uma pré-disposição ao trabalho comunitário. A biblioteca serviu para que o próprio Reginaldo direcionasse seus objetivos. Através do projeto, ele decidiu que deveria estudar e treinar sua leitura, para que pudesse representar bem a sua comunidade.

    Hoje ele tem mais habilidade na leitura e fala até francês. Possui uma análise perspicaz sobre a vida de seu bairro, sempre abordando as chances que cada uma das crianças tem de mudar o futuro. Reginaldo sabe a importância das decisões que tomou na vida. “A Biblioteca foi um desafio comunitário e uma superação pessoal”, conta.

    A questão do futuro das crianças é uma preocupação também de Cleonice, no projeto, a mulher braço direito de Reginaldo. “Cada um de nós tem uma missão. Já vi muita criança nascer e ir embora”, fala com tristeza. Ela é uma pessoa envolvida com a situação da comunidade. Há 11 anos, faz um trabalho com os idosos do bairro. Nesse processo decidiu que algo deveria ser feito também para os jovens. “Como é que um jovem vai crescer com boa educação se ninguém fizer alguma coisa? Pela questão cultural pobre ou trabalha para ter dinheiro ou estuda”, desabafa. Ela também acredita que os freqüentadores da biblioteca estão lá porque gostam. Entre as opções que são possíveis às crianças do bairro, Cleonice sabe que está oferecendo o melhor. “A participação deles é algo muito bom para a comunidade, pois enquanto estão aqui, não estão ali, junto aos traficantes, com uma pedra de craque”, revela.

Na fuga da violência e da miséria está Carolina, 9. A menina demonstra ter consciência da importância dos estudos para uma vida com dignidade. “Se eu não estivesse aqui, poderia estar no meio da rua com pessoas que não prestam”, revela. Para lutar pelo seu futuro, ela enfrenta os desafios de uma família humilde. Vai a pé para a escola, que fica no Bairro do Bongi, a aproximadamente 2 km de sua casa. Está na 3ª série. Seus pais são separados e sua mãe trabalha em uma banca de jogo do bicho. Carolina tem um irmão de cinco anos, mas a mãe deu a criança ao padrinho dele.
    Com uma família desestruturada, ela busca nos estudos uma forma de descontrair e fugir do caos da desigualdade social. “É melhor vir para a biblioteca do que ficar na rua fazendo coisas erradas”, conta. Ela acredita que o estudo pode oferecer os meios necessários para realizar seus sonhos. “Aqui se aprende mais. Para ser médica tem que estudar”, aconselha.

    As próprias crianças que freqüentam as bibliotecas populares fazem isso não apenas como dever escolar. Trazem dentro de si anseios, sonhos e esperança de mudar a vida.

Jailma Barbosa para o Noticiando