terça-feira, 9 de setembro de 2008

Eu sei, mas não devia - Marina Colassanti

Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Este texto é muito profundo, me fez refletir bastante acerca do meu posicionamento frente aos demais acontecimentos do dia a dia. Abraço gente

Análise do texto de Marina Colassanti.

É interessante pensarmos na maneira com que a maioria das pessoas encaram a própria vida. Existem certos conceitos que de alguma maneira, quando não são discutidos assumem uma postura fatalista. Quantas vezes não deixamos passar oportunidades de grandes mudanças na vida ´´só para não ficar longe da família`` ou permanecemos em um emprego ´´só por causa da segurança``? Esses são alguns conceitos que tendem a levar ao comodismo na vida. Na verdade há uma certa covardia em enfrentar mudanças, por isso, nos apegamos a tais conceitos, talvez por medo do insucesso. Então, não queremos correr riscos calculados. Existe uma celebre frase cujo autor não me recordo bem, ´´o medo de perder nos impede de ganhar``. Discutiremos pois, o texto da autora Marina Callassanti através das perspectivas da Antropologia, da Teoria da comunicação, da Sociologia e da Cultura Brasileira.

“A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. (...) A comer sanduíches porque não dá pra almoçar...”
Retrocedendo até o período da colonização do Brasil, encontramos algumas características que justificam o fato de deixarmos muitas atividades para outra ocasião. Um dos motivos para essa despreocupação com o tempo era a localização das casas no período Brasil colônia, que eram muito distantes uma das outras e quando precisavam se locomover, seguiam tranqüilos, pois não haveria nenhum empecilho. Em decorrência deste aspecto notamos a presença tão forte do famosíssimo discurso sobre ´´o jeitinho brasileiro``, onde se deixa tudo para depois.

“A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga (...) E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.”
Encarando essa análise através de uma perspectiva sociológica vamos encontrar o Capitalismo que é um sistema econômico, político e social no qual os agentes econômicos (empresários), proprietários dos meios de produção permitem que esta produção seja comercializada num mercado, onde as transações são de natureza monetária. O objetivo principal do capitalismo é o lucro e o acumulo de riqueza em cima da atividade de trabalhadores livres que vendem sua força de trabalho aos donos do capital. É fato que toda essa ideologia capitalista cultiva na sociedade um espírito consumista, e essa ânsia de comprar por comprar e sempre querer mais, nos impede de viver apenas com o necessário, queremos sempre algo mais e esse sentimento é o que nos torna escravos da ideologia capitalista.

“A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.”
A escola norte-americana, através dos ´´Mass Communication Research`` (Pesquisa de comunicação de massa), converteu-se em primeiro momento nas pesquisas voltadas para os meios de comunicação de massa, particularmente para seus efeitos e funções. Na década de 20 a fundação Payne começou a financiar os estudos de alguns teóricos, com a finalidade de otimizar a utilização dos meios de comunicação que começaram a ascender nesse período. A 1ª guerra foi a principal razão de se estudar a eficácia dos meios de comunicação de massa para obter um resultado desejado no indivíduo. Já na 2ª guerra, notou-se a influência das propagandas, que causava nas pessoas um sentimento nacionalista. O investimento para essas pesquisas era de interesse governamental, para que sua ideologia fosse disseminada. Outras ciências também contribuíram para esses estudos; a Psicologia – fundamentada nas teorias do behaviorismo, a qual afirmava que a comunicação assumia um papel de produzir no indivíduo um efeito desejado, um jogo de Estímulo – Resposta. E a Sociologia – partindo do conceito de sociedade de massa, onde cada indivíduo é visto isoladamente, como um ser que não se relaciona, e que portanto, torna-se mais fácil de persuadi-lo. O desenvolvimento da comunicação humana teve profundas conseqüências tanto para a vida individual quanto para a coletiva e social. E é justamente na era dos meios de comunicação de massa que existe a modernização desses meios, para atingir o maior grupo de pessoas em menor tempo. Essa infindável produção de propagandas, anúncios e comerciais têm o objetivo de gerar no indivíduo um posicionamento desejado frente às questões políticas, comerciais, sociais etc.

“A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo da madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.”
Nossa triste e inevitável realidade busca atender as demandas da tecnologia acima de tudo. É fato que desde o surgimento da Revolução Industrial, os avanços tecnológicos não param, trazendo-nos mais luxo e conforto. Por outro lado, esse crescimento gera em nós um comodismo, cujo objetivo é substituir nossa vida natural por uma vida artificial. Em vez de um ar natural, ouvirmos um pássaro ou acordar com o cantar do galo, muitas vezes preferimos um ar mais artificial que é produzido pela invenção humana (ar condicionado). Isso sem contar no lamentável fato da poluição gerada pelas indústrias, com a emissão de gases poluentes que atingem a camada de ozônio afetando o ecosistema natural do planeta.

“A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.A gente se acostuma para poupar a vida.Que aos poucos se gasta.”
Numa visão antropológica da formação da sociedade Brasileira, nós encontramos os fortes costumes dos índios. Costumes que de uma certa forma ainda refletem em nossa situação vigente. Os índios por exemplo, tinham o costume de caçar e pescar apenas para satisfazer suas necessidades momentâneas, e gastavam o resto de tempo em contato com a natureza. Esse sentimento de não trabalhar arduamente, de não se expor, de não fazer além do que se é necessário herdamos deles. É interessante como temos medo de enfrentar situações que podem nos fazer ´´suar a camisa``. É interessante como desistimos tão facilmente de ir atras de nossos objetivos e ideais, só porque talvez isso nos custe algum tipo de sacrifício. Na verdade, temos receios em tentar vencer o próprio medo que nos assola. E infelizmente muitas vezes nos acomodamos porque das vezes que tentamos realizar algo, alguém nos disse que não podíamos, que éramos incapazes, disseram quem nossos sonhos eram impossíveis. E o pior é que passamos a aceitar essas mentiras, e nos esquecemos de perguntar ao autor da vida quem de fato somos e o qual é o nosso potencial.

Esta foi uma análise proposta pela professora Regina Célia da disciplina de Filosofia, pelos alunos do curso de Comunicaçao Social; Anderson Kleiton, Elis Martins, Lucas Sena, Paulo Vinícius e Ramos José, todos da Faculdade Maurício de Nassau - Recife/PE.